quarta-feira, 23 de maio de 2007

A Carta De Alice

Domingo. Em casa ele se recuperava da ressaca provocada por inúmeras doses de vodca banhadas a Red Bull em um show de rock cheio de pessoas as quais não conhecia. Resolveu então para passar o tempo, mudar as coisas do seu quarto pela sexta vez nos últimos seis meses. Mexendo e remexendo, verificando ângulos e personificando conceitos vendo um livro de Feng Shui aberto no chão.
Tenta puxar uma mala, mas ela se despeja contra o chão arremessando milhares de papeis e envelopes, anos e anos que não são mais nem sequer lembrados. Ele reluta, começa a jogar tudo de volta na mala, sem olhar muito, sem pensar muito, mas então vê um pequeno envelope azul, com um Garfield sorrindo e as lembranças tomam de assalto a sua mente.
Abre o envelope. E lá está ela. Imutável. Parece que não se passaram os 10 anos que sua mente acusa. É uma carta. A carta de Alice. A carta que passou tanto tempo lendo e relendo, naquilo que julgava ser um grande caso de amor, naquilo que parecia ao mesmo tempo abençoado pelo toque da paixão e amaldiçoado pelo bom senso. A carta de Alice. A carta que ela jurou nunca escrever. Mas que escreveu como despedida.
Ao reler a carta, lembra de um tempo que parecia tão sem graça, mas que deixou suas garras marcadas no peito, suas doenças a espera de uma cura, seus sorrisos cientes de que não foram em vão. Quando chega no trecho “...e apesar de o mundo parecer que não foi feito pra gente ficar junto, eu te proponho mudar de mundo, eu te instigo a sair de tudo isso, esquecer de todos (...) eu só preciso dizer que te amo e apesar de que possamos ficar distantes, você vai ser com certeza o amor da minha vida. Para sempre”.
Palavras tão infantis vendo agora, tão sem sentido, mas que na época representavam quase o mundo por inteiro, quase a própria vida. Uma lágrima se arrisca a saltar dos olhos, mas é imediatamente paralisada contra um guardanapo sujo. Ele não precisa mais disso. Nem ela. Um dia precisaram é verdade, mas o tempo curou de apagar tantas manchas, de segregar os sonhos, de erradicar as ilusões.
Hoje a sua vida não tem mais espaço para essas coisas, segue vivendo em um “piloto automático”, onde tem do bom e do melhor, vive em mundo realmente interessante para ele, se vê como uma pessoa respeitada, realizado dentro da sua profissão. A sua vida de hoje não tem mais espaço para paixões. E mesmo julgando isso uma grande fragilidade do seu ser, ele não vê como mudar, o caminho está fechado. Há tempos.
Não há mais espaço para Alice. Sua bela Alice hoje não existiria. Nem a sua carta. Alice foi embora. E enquanto acabava de arrumar seu quarto, uma antiga canção tocava seus últimos versos no som : “there´s nothing else i can really do at all...” O telefone toca e ele se arruma para curtir outra balada pela cidade. Com mais emoções compradas e risos sem Alice.

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