terça-feira, 1 de novembro de 2005

Dom de Iludir

Ele era um quarentão enxuto, solteiro, figurinha carimbada nas noites da cidade, que se achava um verdadeiro Don Juan saindo para "caçar" sempre sozinho, acompanhado apenas de um copo de uísque na mão, que na verdade nunca bebera era só para fazer charme, como costumava afirmar. Ela era magnifica, no alto de seus 30 e poucos anos, com um ar de Demi Moore no rosto, parecendo imponente, independente, esbanjando auto suficiência nos gestos, uma verdadeira mulher dos novos tempos.
Se encontraram no ambiente de música ao vivo da danceteria, onde o Solano Quartet esbanjava um jazz e mpb de alto nível. Determinado hora, os olhos se entrelaçaram de forma suspeita e indicativa, ele fazendo pose em um canto do balcão e ela com um cruzar de pernas fascinante do outro lado.
Ele pediu outra dose de uísque, mandou o barman que jogasse fora a antiga, visto que estava só água e partiu ao encontro dela, puxando a mais barata das cantadas conhecidas:
-Boa noite, estava lá do outro lado e não pude deixar de notar sua beleza, vens sempre aqui?
-Não, hoje é a primeira vez.
-Agradável esse ambiente, não?
-Para falar a verdade, não estou gostando muito.
-Mas a música está boa, há de convir...
-Eu nunca gostei muito de Miles Davis, ela diz.
-Olha, você pode até não acreditar, mas acho que te conheço de algum lugar (sim, ele soltou essa pérola)...
-Só se for do supermercado.-
Porquê? Não costumas sair de casa com freqüência?
-Só para o trabalho.
-Desculpe minha modesta intromissão, mas trabalhas com o quê?-
Sou editora.
-Que interessante, gosto muito do Milan Kundera, acho aquele livro dele "A Brincadeira", muito intenso, concordas?
-Prefiro "A Imortalidade".
-E de literatura beatnik, gostas?
-Odeio! Acho os autores um monte de rebeldes sem causa.
-Mas as palavras deles marcaram uma geração..., insiste ele.
-Odeio Beatles, beatniks e principalmente bitolados, detona ela.
-Você deve gostar dos Stones, então?
-Não, Frank Sinatra.
Ele para, "Ela parece ser inteligente", pensa. Na verdade não conhecia nada de jazz e muito menos de literatura, sabia o nome de alguns autores e livros que usava como charme barato para impressionar as mulheres mais distraídas, não tinha a mínima idéia do que era um beatnik e muito menos sabia quem era esse tal de Milan Kundera, sobre quem tinha lido alguma coisa na Bravo! do mês passado.
E apesar de não estar dando uma dentro, ele era brasileiro e não desistia nunca, partia de novo ao ataque aproveitando a deixa de uma música do Caetano, esse sim ele conhecia, tinha todos seus discos, livros, colecionava autógrafos e tudo mais.
-Essa música é maravilhosa....
-Eu não acho, retruca ela.
-Você não gosta de Caetano? Não acredito?
-Tenho é raiva, acho ele forçado e gay.
"Agora parou", pensa ele. "Dar uma de difícil, me esnobar, não gostar de Beatles, tudo bem, agora chamar o Caetano de bicha não dá, pô!".
-Pois bem, acho que está chegando minha hora, já vou embora.
-Porquê?
-Porquê? Droga, você fica me encarando, cruzando as pernas direto na minha direção, quando eu chego para falar contigo, discordas de mim a toda hora, fica me enrolando e ainda por cima chama o Caetano de gay e ainda queres saber o porquê? Tenha paciência, tchau! Vou Dormir!
-No meu apartamento ou no seu?
E de noite naquele quarto em uma tórrida noite de amor, ao fundo toca "Dom de Iludir" do Caetano, fazendo ecoar pelo ar as frases:
"Não me venha falar da malícia de toda mulher...como pode querer que a mulher vá viver sem mentir...."

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